7.8.08

Duendes Mentais

Cena 1
Rui acorda durante a noite com mais alguém no quarto, baloiçando na sua cadeira de baloiço. É um homem idoso. Rui compõe-se na cama e inicia-se uma conversa.

Homem Idoso – Finalmente conseguimos vermo-nos mutuamente...

Rui – Mas quem és tu?

HI – As respostas virão depois.

Rui – E... (Rui é interrompido)

HI – Para já o importante continua a ser o tempo, esse velho companheiro das eras.

Rui – Estou estranhamente calmo, como se já o conhecesse.

HI – Não é de todo falso, eu sou o que vocês chamam de projecção mental, não estaria aqui se não atendessem a chamada, afirmo assim.

Rui – Estou a seguir. Se eu não quisesse ver, mais ninguém via.

HI – É isso mesmo, e isto aplica-se também a mim, já imaginaste se a projecção viesse de muito longe?

Rui – Até tenho uma teoria sobre isso.

HI – Tens ou temos? Olha que somos astronomicamente muitos, de muitas galáxias. A genialidade tende para o infinito sempre que um ser humano chora ao nascer. Há muitos planetas onde as pessoas sonham com o número daqueles que erguem o Sol e, em alguns casos, mais do que um Sol.

Rui – Estou a passar por aquilo que aglutinou todas aquelas pecinhas de sonhos desorientados, tudo se junta aqui neste quadro.

HI – Na verdade está a passar-se em todo o lado, incluindo neste quarto, pois, como tu sabes, tudo está num ponto, e estará.

Rui – Então que ilusão óptica é esta?

HI – Estás a ir depressa demais. E mistério dos mistérios, nem sempre é fácil aceder a toda a informação, estando ela confinada como tudo, num ponto, e bem compacta.

Rui – Só posso imaginar, só posso imaginar.

HI – As empresas, não só deste planeta, enviam cartas com a marca do remetente, as pessoas assinam por baixo. No núcleo das células está o projecto do ser da cabeça aos pés. Como tu bem teorizaste, no momento do Big Bang tudo levou um selo de marca, registada e eterna, uma Coca Cola Universal.

Rui – Há uma Coca Cola em cada planeta?

HI – (Sorrindo) Digamos que há melhor e pior, do pai natal não posso falar. É um prazer estar mais uma vez contigo, depois de tantos anos de preparação e ajustes. Tu ainda não te lembras, mas andas de vida em vida, humana, para que possamos saber como é, o frio e o quente e todas as fases da lua da experienciação. O símbolo do yin-yang está exposto em galerias visitadas em sonhos de jovens pintores. Tu Rui, cresces a cada nosso encontro, mas sabes o quão atarefados somos, tu sentes o palpitar dos nossos números, não sentes?

Rui – Talvez, não sei. Talvez agora o queira sentir, agora, após anos de contemplação em frente ao oceano quente e atraente, a criança resolve esquecer os tubarões e as ondas e mergulhar um dos dedões primeiro.

HI – É tão bom rever-te sempre tão outro. Tão cheio de energia pura e potente. É sempre algo muito diferente, uma peça de barro feita pelas mesmas mãos, com a mesma matéria, mas sempre tão diferente.

Rui – Sabes que não gosto de ser bajulado...

HI – Nem respondo. Mas o importante começa a partir desta próxima frase. Eu vou demorar anos, repito, anos, a recuperar desta nossa conversa aqui. Por isso temos de a aproveitar ao máximo. Eu acho que posso mais umas duas horas, mas deixa perguntar à produção (tapa os olhos com uma mão em consulta interna). Bem, não estou para conversas parvas, continuemos.

Rui – Sinto no ar uma ânsia de que aconteça algo, de se testemunhar algo, o querer estar lá para se falar, se falar... nem sei bem.

HI – Sabes sabes. Todos sabem mas não se lembram, nem podia ser assim. Para se nascer é preciso esquecer o que é estar-se morto, e o inverso, validando tudo.

Rui – Então porque não me lembro da tua cara?

HI – Porque és outro tu, o que obriga a ser outro eu, perante ti, porque perante o espelho ninguém nos vê como nós próprios.

Rui – (Sorrindo) Que frase bonita. Deixa ver se percebi uma coisa.

HI – Força.

Rui – Quer dizer que algures estás tu todo concentrado aqui...

HI – Imagina tu a pontaria. O tempo que levou a desenvolver a técnica, dizes que foi muito? Se levasse algum tempo, achas que estaria disponível em todos os cantos do universo? A nossa conversa acaba aqui e assim, não te lembras mas foi por comum acordo. Um até amanhã.

Rui compõe-se na cama e adormece.


Cena 2
Um jovem, Manuel, sai de um estabelecimento prisional e encontra uma senhora de aspecto místico.

Manuel – Boa noite senhora, sabe dizer-me onde posso pernoitar por estas bandas?

Senhora – Posso dizer-te que não vais pernoitar hoje. Hoje vai ser noite de conversa que já vais atrasado para o resto da tua vida.

Manuel – Já que vamos conversar toda a noite, posso saber com quem?

Senhora – Sou uma estranha entre estranhas, um espelho entre lagos, uma vírgula entre frases.

Manuel – Obrigado, e que gosta de beber, certo?

Senhora – Não, não gosto. Mas gosto da minha missão. Trazer paz à guerra, caminho ao perdido e água ao moinho. Também gosto de brincar com a verdade como se ela não queimasse nas mãos.

Manuel – Estou a gostar. Primeiras horas de liberdade interessantes sem dúvida.

Senhora – Um velho gasto de tanto andar, pôs-se ao caminho dos andes. E andou andou andou, para longe de todos os olhares e para ninguém morreu. Chegou a um pico de altura e de frio, abriu os braços ao pôr do sol peruano e transpôs o corpo ao vento gelado. Consta que levava um saco cheio só de verdades e que deixara as mentiras para indicar o seu derradeiro caminho. Pois eu dei com esse saco. Agora a verdade é de todas as pessoas.

Manuel – Seguiste a mentira.

Senhora – Resolvido o problema do estômago, o ser humano ganha tempo para pensar. Não lhe chega saber que o universo é mesmo grande. Entrega-se à vertigem do infinito, entretanto, tempo precioso de vida passa. Não serão as verdades, valiosas o suficiente, mais importantes do que o caminho sinuoso para a elas chegar?

Manuel – Dizem que as verdades, aquelas que ecoaram por toda a história e não encontraram livros para poisar, essas verdades, libertam. No entanto ainda trago grades na cabeça, percebes?

Senhora – Não me digas que vais ficar pelos novos porquês quando ainda nem todas as certezas arrumaste.

Manuel – Não, não digo. Na prisão encontrei-me livre da prisão do corpo. Viajei por vales entre montes monumentais. Sentava-me antes de ir dormir e abria os olhos fechando-os. Quando inspirava sentia-me expirar e vice versa, fazendo com que este corpo estivesse exterior ao tudo eu. Noite após noite o ritmo respiratório diminuiu, a amplitude aumentou para além dos limites planetários. Respirei a lua, o sol e as outras estrelas. As grades, as ruas e as lágrimas. O dia de levar dali o saco de ossos e o dia de trazer para lá pinceladas de energia. Andei em ondas que trincavam praias em planetas distantes, mas não para os meus pés.

Senhora – São praias das quais não podes guardar areia, mas do teu corpo só os olhos se bronzeiam...

Manuel – Estive preso livre mas não me livrei de estar preso. O que nos prende não são as grades, são as pessoas.

Senhora – No lago as pingas provocam círculos em expansão que quando se tocam, seguem.

Manuel - À muito que ninguém puxava por mim. Obrigas sempre as pessoas a irem fundo?

Senhora – Digamos que é por razões de tempo. E sabendo que muitas coisas se passam ao mesmo tempo, mais assustada uma pessoa fica ao saber que tudo já se passou nesse mesmo mesmo tempo. O desfocalizar objectivos impressiona quem vê uma infinidade de probabilidades no universo tridimensional recém nascido. Há planetas em que as pessoas envergonham os fotões que com eles colidiram. Em outros veneram-se cometas e suas vestes de seda branca. Muitos existem para celebrar a vida e a sua raridade. Por muito que varram o lixo para baixo do tapete que só vocês vêm, nada podem esconder. Quando simplesmente um de qualquer dos de vocês quiser muito uma coisa, todo o universo conspira, todo o universo está sempre ao alcance, simplesmente está-o em todo ele.

Manuel – Informação densa me ofereces...

Senhora – Sim porque me deixaste fazê-lo.


Cena 3
Andreia passeia por uma floresta, ao passar por uma árvore, esta fala-lhe.

Árvore – Porque nunca me olhas? Não acredito que estejas surpresa, afinal de contas falas às árvores, abraça-las, dás-lhes mimos e à única que fala, nada?

Andreia – Desculpa mas pensava que estava num já visto.

Árvore – Andreia, dá-me um abraço, tenho saudades de um (Abraçam-se).

Andreia – Que bom, tens uma energia profunda.

Árvore – Sim, tenho longos ramos, longas raízes e longas histórias. E tu também.

Andreia – Não temes ser vista a falar comigo, ou isto está a ser uma ilusão?

Árvore – As raízes das árvores tocam-se, elas avisar-me-iam. Não temas o que ainda não aconteceu, sob o perigo de criares uma realidade emergente. Mas ao imergir numa realidade que rejeitamos podemos ser criadoras da semente revolucionária. E é de uma revolução que precisamos, como bem sabes Andreia.

Andreia – Mas és uma árvore, não és?

Árvore – Tenho tanto de árvore como de machado do lenhador. A única maneira de não sofrer com os golpes é ser ambos, mas o lenhador não faz isso, pelo menos neste planeta, o que é um problema.

Andreia – Estou confusa. Venho para aqui passear desde menina.

Árvore – Eu sei.

Andreia – Exactamente para simplificar o meu ser com a vossa companhia, sempre senti um apelo, cheguei a pensar que ouvia sussurros...

Árvore – As pessoas criadoras furam as regras de equilíbrio do respirar compassado do mundo. São foco de desequilíbrio, obrigam a ajustes por todo o lado. Se soubesses a trepidação que te envolve e o que provoca ao tocar-nos, não saías mais daqui.

Andreia – Mas é isso que sempre quis, viver por aqui, entre este cheiro sempre activo, sempre gratuito!

Árvore – É teu intuito trazeres pessoas, em outras vidas trouxeste inquisições, aldeias ciumentas do teu isolamento, pensavam eles, embora na realidade, foi e continua a ser, o inverso. Depois resolveste viver entre eles e continuar a vir aqui a miúdo, o que foi uma excelente decisão, mas as coisas não estão a correr como o planeado...

Andreia – Vocês estão a desaparecer, mas continuo a sentir-vos em sítios rapados.

Árvore – O amputado sente o membro para lá do facto, mas na realidade os vossos corpos luminosos são inquebráveis, indivisíveis.

Andreia – Ser activista pelas florestas não tem sido o suficiente...

Árvore – Não, não tem chegado. Se o lenhador agradecesse a cada árvore sacrificada, as outras cresceriam por ele, não resistiriam a um agradecimento. Dentro do mesmo ramo de raciocínio, se por cada visita plantasses uma de nós, a aldeia podia ter mais mil machados que a temperatura das casas não tenderia para o infinito.

Andreia – Podemos todos fazer muito mais. Estou destroçada. Sinto-me com mil árvores de atraso. Como se tudo não tivesse valido a pena. Talvez a culpa da mancha verde ser cada vez mais pequena seja minha, tantas palavras e lágrimas para nada.

Árvore – Pensas que ficamos abandonadas quando o teu corpo se ausentar? Ainda vislumbro o verde por esses campos fora, só pode ser sinal de que voltará. A natureza da natureza é voltar, exactamente como o machado, num ir e vir firme. A vitória não será saborosa porque foi difícil, mas porque sempre foi inevitável.

Andreia – Sempre soube disso, cada chapada de meu pai, fazia-me virar a cara para a floresta ainda de pé. Até que desistiu de me bater, eu queria era vir para aqui. Pouco tempo antes de se ir, ainda veio comigo algumas vezes, ensinei-o a abraçar-vos.

Árvore – Ele abraçou-me várias vezes, de cada vez foi-te retirada uma chapada e por isso vocês separaram-se em paz. Como nós nos temos que separar agora.

Andreia – Mas não vais estar sempre aqui?

Árvore – Não. Vou estar por todo o lado. E por ser toda a consciência das árvores juntas, e por poder ser todas elas não temo os machados, só a ignorância de quem neles pegam.


Cena 4
António bebe água de um riacho, com as mãos em concha. Por trás de si surge um homem, ao tocar-lhe no ombro diz:

Provador de Águas – Então, que tal o refresco?

António – (um pouco assustado) Óptimo, mesmo revigorante.

PA – Se soubesses quantas vezes fui a correr para ver se lá em baixo sabia ao mesmo, ficavas cansado neste momento.

António – E que ensinamento obtiveste da nascente?

PA – A água é um tapete líquido com sabor às rochas circundantes e ao ar, um pouco.

António – Assim o património universal do experiênciar sabe ao que lambe.

PA – Tu és um rio com um enorme caudal. Barragens fecham-se à tua chegada, inocentes do teu tamanho.

António – Estamos reduzidos aos rios até às cidades.

PA – Como se o sal os envenenasse até ao salobre, António.

António – Já lá deixaste sedes?

PA – Entre as cidades e o mar há muita rocha e ar. Mas a água já sabe mal, sempre. Um provador de águas prova em altitude, acima de gases pesados, por baixo da mais pura precipitação.

António – Sendo cada sítio único, porque não procurar sorver também o que efectivamente é original?

PA – Tu não és tu, mas ao mesmo tempo, de ti tens muito tu. O rio corre para baixo, mas queres ir para cima, ao menos olha-o. No outono a folha não percorre o rio, ela caiu.

António – Andei uns tempos preocupado com as fontes, pensei ter descoberto pingas, nenhum fio continuo no verão. No inverno venho cá menos. No outono, um poeta que notasse a queda cumprida da folha, podia pô-la a percorrer um rio.

PA – Assim fará Deus em quadros eternos.

António – Onde bebeste a melhor água?

PA – Onde encontrei a maior sede,... (levando uma mão ao pescoço) aqui, ...na garganta.